Consciência Negra: novembro é marcado por comemorações e debates em todas as comunidades do QUIPEA
“O dia de Zumbi não é apenas uma festa, está aí para que lembremos desta data e para que a história não se repita." Com a fala de impacto, Dona Úia, figura célebre do Quilombo da Rasa, iniciava a tarde de reflexão e celebrações na cidade de Búzios. Uma das personagens mais emblemáticas da resistência quilombola ao redor do estado do Rio, Úia lembrava a quantidade de significado e complexidade da data. O feriado de Zumbi parava cidades e movimentava turistas ao redor do país, mas foi celebrado acima de tudo com respeito, alegria e resistência pelos donos da festa. Todas as comunidades do QUIPEA tiveram suas comemorações ao longo do mês de novembro reforçando suas próprias identidades e fortalecendo o seguimento da luta. Juventude, educação quilombola, conquista do território, manutenção da cultura e diálogo com poder público foram algumas das bandeiras levantadas pelos quilombos através de diferentes linguagens como capoeira e jongo. Se o dia de Zumbi, no imaginário nacional é data de festa, memória e descanso; nos territórios remanescentes de quilombo, o dia é de muito trabalho e união.
Na Região dos Lagos, comunidades irmãs dialogaram em espaço público muito antes de comemorar. Os quilombos de Baía Formosa, Rasa e Maria Joaquina, que têm a mesma origem, tiveram representantes reunidos em roda de debate e refletiram sobre a luta da resistência negra no Brasil. Com a presença de vizinhos de bairro, pesquisadores, estudantes, representantes da Shell e do poder público, griôs e curiosos, uma intensa tarde de debates abriu a celebração do dia 20 no bairro da Rasa, em Búzios. Capoeira, artesanato e religiosidade de matriz africana estiveram na agenda de debates, que teve cobertura de imprensa televisiva do SBT.
O clima de integração foi a marca da festa em Búzios. Se no passado a região foi porta de entrada para um período lamentável da história do Brasil com a chegada dos navios negreiros, neste dia 20 foi campo de diálogo e terreno fértil para o respeito mútuo. Enquanto as emblemáticas bonecas de artesanato da Rasa eram vendidas e a tradicional culinária quilombola era servida, diferentes perfis de visitantes circulavam pela festa. Foi o caso do antropólogo e professor da UFF, Sidney Peres, residente do bairro da Rasa e que esteve presente na festa e aproveitou a importância do evento para ressaltar que a identidade da área com a causa quilombola é secular e que ela segue precisando de atenção do poder público:
- Hoje é um dia importante para relembrar que todos os Quilombos desta região têm a mesma origem e que isso tudo começou no tempo do império quando o tráfico clandestino de escravos foi proibido no Rio e veio para cá. A região de Cabo Frio passou a receber uma quantidade grande de embarcações vindas da África e a partir daí tornou-se um polo de resistência cultural negra – comentou Sidnei, que fez questão de ressaltar também a necessidade de todos os quilombos da região estarem juntos numa mesma luta.
O reforço da identidade e origem de irmandade nas comunidades da área também foi relembrada pela coordenadora de campo do QUIPEA, Rejane Maria. Parente de Dona Úia, da Rasa, Jane representa o Quilombo irmão de Maria Joaquina e defende a integração das comunidades por todo estado do Rio como a grande chave para o fortalecimento da luta:
- Hoje estamos todos juntos aqui, porque os quilombos são diferentes, mas a luta é
a mesma. Todos aqui são irmãos e primos porque viemos do mesmo lugar e, nãosomente aqui na Região dos Lagos como em todos os estados do país, precisamos seguir juntos – completou Rejane, que também ressaltou a recente evolução na organização e fortalecimento da luta naquele território.
Com microfone aberto para a comunidade e entre rostos diversos, a tarde de reflexão e festa na Rasa deu voz a diferentes personagens. Uma delas foi Marta Costa, representante do Quilombo da Rasa e hoje membro do Departamento Cultural do QUIPEA. Marta atribuiu ao apoio do projeto este aumento na regularidade de interações entre comunidades do Rio de Janeiro e Espírito Santo.
Segundo ela, o diálogo e encontros mais frequentes entre as comunidades a partir do projeto tem sido fundamental para manter uma rotina integrada e com discurso comum.
20 comunidades, o mesmo discurso
Além da presença na Rasa, os quilombos da Região dos Lagos tiveram suas próprias celebrações ao longo do mês. Em Maria Joaquina, debates sobre juventude e identidade abriram as celebrações. No quilombo de Baía Formosa, o resgate da memória e do povo quilombola foi o foco da discussão. No quilombo de Maria Romana, uma exposição de fotos e exibições cinematográficas fortaleceram o debate sobre a memória dos antepassados. Em Botafogo, uma importante roda de conversa sobre a Semana da Consciência Negra envolveu Coordenadoras de Campo do Projeto, Comunitários e apoiadores locais.
No município de Quissamã, que abriga as comunidades de Bacurau, Boa Vista, Machadinha, Mutum e Santa Luzia, o centro cultural e comunitário Galpão Boa Vista foi inaugurado na área do quilombo de mesmo nome e promete ser um importante polo de resistência e cidadania na luta quilombola da região. As demais comunidades do QUIPEA, como Preto Forro, Sobara, Graúna, Deserto Feliz, Alelúia, Batatal, Cambucá e Conceição do Imbé, optaram pela realização de grandes eventos com muita música, gastronomia, artesanato e demais apresentações que reforcem a identidade e cultura quilombola. As festas, além de um importante movimento de articulação e promoção das raízes de cada comunidade, também serviram de amostra do que acontecerá no dia 5 de dezembro nas comunidades de Cacimbinha e Boa Esperança, em Presidente Kennedy- ES, que abrigarão o Terceiro Evento Cultural do QUIPEA. Nele, todas as comunidades juntas literalmente estarão unidas reforçando suas raízes e demonstrando na prática o quão fortalecidos estão os quilombos que compõem o QUIPEA numa articulação e força conjunta. O discurso, que durante o mês de novembro esteve particularmente em cada manifestação das comunidades, se junta no mesmo espaço para fechar 2015 com muito trabalho, alegria e luta.
Sobre Zumbi
O dia de Zumbi é comemorado por todo o país e tido oficialmente como feriado nas principais cidades do Brasil no dia 20 de novembro. Para o universo quilombola, a data estimula comemorações e manifestações culturais durante todo o mês, mas Zumbi é símbolo de libertação, liderança e autonomia também durante todo o resto do ano. Maior símbolo da resistência negra no Brasil, Zumbi dos Palmares foi o último líder do Quilombo do Palmares durante o século XVII e é um dos maiores ícones da história do Brasil. Sua imagem e exemplos de luta por direitos e igualdade influenciam até hoje todas as etnias e culturas de norte a sul do país.